Crickey.com 26 de julho de 2019 Como a Austrália destruiu o seu legado em Timor-Leste Sophie Raynor (Tradução EN-PT: Telmo Ferreira – Tradutor Acreditado NAATI)

Passaram já quase 20 anos, desde que a Austrália liderou a força de manutenção de paz que entrou no país, mas a nossa real relação bilateral está minada por manipulação, deceção, intimidação e ganância.

Há vinte anos, em setembro, a força internacional de manutenção de paz liderada pela Austrália, conhecida como INTERFET, aterrou nas terras queimadas do recém-independente Timor-Leste: um país, há alguns dias saído de um sangrento e árduo processo de independência da Indonésia, e a necessitar, desesperadamente, de ajuda.

Estávamos lá e estávamos prontos. A Austrália liderou o que foi, então, uma força de manutenção de paz, composta por 11.000 soldados, de 22 países; algo que foi considerado como um incontestável sucesso. John Howard apelida a intervenção de “um significativo triunfo, em matéria de política externa”, dizendo que não mudaria uma vírgula ao que foi delineado, e os soldados Indonésios retirar-se-iam, por completo, no final de Outubro. O batalhão de defesa Australiano foi devidamente reconhecido pelo seu esforço.

Mas a INTERFET é apenas uma pequena parte da história da Austrália com Timor-Leste. E, numa história minada por manipulação, deceção, intimidação e ganância, a INTERFET não é a peça central que nós gostaríamos que fosse – de facto, o  seu legado é uma deceção. A nossa verdadeira história com Timor-Leste começa alguns anos antes, quando o Major-General Peter Cosgrove conduziu os seus soldados pelo calor húmido de Timor-Leste, para ajudar a construir um novo país.

De volta a 1999

Após mais de 78% do povo Timorense ter votado a favor da independência, num referendo realizado em 30 de agosto de 1999, as furiosas milícias paramilitares pró-Indonésia responderam com violência – arrasando, sistematicamente, localidades, queimando edifícios, e atacando e matando pessoas. Acredita-se que cerca de 1500 cidadãos Timorenses terão morrido em resultado da violência, tendo dezenas de milhares abandonado as suas casas, em direção às montanhas, e as tropas Indonésias levado mais de 300.000 pessoas para junto da fronteira com Timor Ocidental.

A indignação internacional forçou a criação da INTERFET. A Austrália – um parceiro chave na decisão de intervenção – decide reverter, então, uma década de política externa ambígua (preferindo esquecer-se do problema de Timor-Leste) e avançou.

Não restam dúvidas de que a INTERFET fez um bom trabalho. Mas a decisão, da Austrália, de ir para Timor-Leste não era bem uma declaração de princípios de um país, determinado em garantir a frágil soberania do seu vizinho.

A história do petróleo

Apenas dois meses antes da independência plena de Timor-Leste ser restaurada, a Austrália retirou o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça para decidir conflitos relativos a fronteiras marítimas: o exato tipo de abordagem que um Timor-Leste independente necessitaria colocar acerca das lucrativas reservas de petróleo e gás enterradas bem no fundo do Mar de Timor.

Livre do olhar independente do adjudicador, a Austrália adotou uma abordagem otimista nas negociações da riqueza em petróleo e gás, avaliada em vários biliões de dólares, como tinha com uma Indonésia mais permissiva, na década de 60, do século passado (e cuja invasão de Timor-Leste, em 1975, ignorámos, como um compromisso tácito para a partilha de recursos).

As negociações resultaram numa “mão-cheia” de tratados para a utilização de recursos, mas, efetivamente, sem delimitação de qualquer fronteira permanente. A Austrália queria evitar o estabelecimento de uma fronteira, porque nós sabíamos estar a reclamar recursos aos quais, simplesmente, não tínhamos direito, os quais uma fronteira iria, imediatamente, e de pleno direito, alocar a Timor Leste.  E, ao invadir o território, criámos um plano para levar avante as nossas intenções.

Só que saímos frustrados.

Em 2012, o ex-oficial de inteligência da ASIS (Serviços Secretos de Inteligência da Austrália), conhecido como “Witness K”, revelou (de modo estrondoso) que a Austrália havia invadido os gabinetes de Timor-Leste, visando ganhar vantagem durante essas tensas negociações.

No âmbito do guia de reforma de construções, financiadas por ajuda internacional, enviamos engenheiros para instalar dispositivos de escuta, o que nos forneceu as informações necessárias para distorcer as negociações a nosso favor.

Timor-Leste rasgou o acordo desigual de “Determinados Acordos Marítimos no Mar de Timor” (CMATS) e levou a Austrália a Haia, para conciliação – um processo que acabaria por traçar uma fronteira marítima histórica e permanente no meio do mar de Timor, colocando quase todos os recursos altamente valiosos da área, no lado de Timor-Leste.

Em público, saudámos o acordo “histórico”. Em privado, organizámo-nos para processar os homens que disseram a verdade: a testemunha K e o seu advogado, Bernard Collaery, enfrentam agora acusações.

O primeiro ministro de Timor-Leste à época, Mari Alkatiri, considerou a escuta como “crime”, ao qual Alexander Downer respondeu, acusando Timor-Leste de nos chamar de agressores. O que foi um erro, o ministro disse, “quando se considera tudo o que fizemos por Timor-Leste”.

O nosso anterior auxílio, de acordo com Downer, legitimou-nos para tratar Timor-Leste como quiséssemos, depois da saída das tropas da INTERFET. Isso incluía forçar a autorização ao nosso roubo de petróleo.

Regresso a Díli

Agora, Scott Morrison e Cosgrove receberão os seus convites para o espetáculo das comemorações do dia do referendo de Timor-Leste (há rumores de que 100 chefes de estado estão convidados). Eles serão recebidos calorosamente em Dili, chegarão interessados ​​em valorizar a assistência da INTERFET e em reforçar o papel da Austrália como o maior doador de ajuda externa de Timor-Leste; no papel, um vizinho próximo quer ver a nação prosperar.

Mas a Testemunha K e a Collaery estão presas em processos legais prolongados e ofuscados com o tempo de prisão pairando sobre suas cabeças. Esse tratado de fronteira conquistado amargamente permanece sem ratificação pelo nosso parlamento, e até isso, continuamos a arrecadar milhões de dólares por mês do Mar de Timor que já concordamos que não nos pertencem. Estimado, por defeito, em 60 milhões de dólares Americanos, o valor que tomamos pode rivalizar com os 95,7 milhões de dólares Americanos, em ajuda externa, que prometemos a Timor-Leste, entre 2018 e 2019.

Na assinatura do tratado de fronteira em março do ano passado, Julie Bishop saudou um “novo capítulo” no relacionamento bilateral. Ela estava certa: viramos a página da glória da INTERFET e agora vemos apenas uma lamentável história de roubar riqueza, espiar amigos e processar aqueles que ousam dizer a verdade.

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